Nos Estados Unidos, disseminação dos
autorretratos é apontada como razão para aumento de intervenções no
rosto e também nas mãos. Pressão constante nas redes sociais e
aplicativos teria aumentado insegurança, principalmente em adolescentes e
adultos jovens.
A psicóloga Fernanda Seabra, especialista em Terapia Familiar Sistêmica e
integrante do Projeto Adolescer, foi a profissional que ouviu a frase
que abre a matéria. Com aquelas palavras exatas. Ela aponta que o
narcisismo, apesar de sempre parecer a explicação mais fácil nesses
casos, realmente está inserido nesse contexto, mas não é o único
argumento. “Parte dos usuários – não todos, é claro – vive no mundo
virtual aquilo que não consegue viver na realidade. São pessoas em sua
maioria carentes, com autoestima debilitada e que dependem de 'curtidas'
e comentários para se sentirem bem, para terem a sensação de que são
amados”, explica.
Fernanda salienta que essa 'necessidade' não é
nova, o que mudou foi a rapidez com que a informação e a imagem
circulam. Com o ambiente virtual, tornou-se possível construir uma
imagem de glamour e ganhar visibilidade com essa pose, ainda que seja
uma meia-verdade. “Quem conquista essa visibilidade passa a ser
'seguido' e as marcas estão de olho nesses porta-vozes. O transtorno de
personalidade narcisista, caracterizado, entre outras coisas, pela
pessoa que precisa constantemente de aprovação externa, sempre fará
parte dessa relação”, avalia. Um outro complicador é que o narcisista
quer que o outro veja tudo que ele faz, mas não quer que as outras
pessoas tenham a mesma oportunidade.” Aos poucos, essa pessoa vai
perdendo parte de suas características humanas – a bondade, a compaixão,
o altruísmo”, destaca a psicóloga.
A desumanização vem
acompanhada de um pensamento com foco em imagem, poder e status. No caso
das mulheres, principalmente, em magreza. Fernanda cita dois exemplos –
a 'selfie' pós-sexo e o 'Ken brasileiro'. “A selfie #aftersex, que se
tornou moda nos últimos meses, tem alguma outra função que não dizer ao
mundo que se é uma pessoa amada, que se tem vida sexual satisfatória –
ainda que a realidade não seja tão cor de rosa assim?”, questiona a
psicóloga.
No caso do modelo Celso Santebañes, mais conhecido
como o Ken brasileiro, uma declaração recente chamou a atenção de
Fernanda - “quando estou triste, olho no espelho, aí não fico mais
triste”, disse em entrevista na televisão. Aos 20 anos, ele já gastou
R$30 mil em cirurgias plásticas – nariz, queixo, peito. “O entrevistador
questionou porque o rapaz não olhava nos olhos dele na entrevista. Ele
disse que preferia olhar o monitor. É um sinal de desumanização”,
exemplifica a especialista.
É claro que existe uma parcela das pessoas que faz uso saudável da rede -
por motivos profissionais, para dar notícias aos amigos e familiares em
momentos de viagem, por exemplo. “São pessoas que vivem o mundo real,
têm amigos reais, não 'precisam' de curtidas e comentários. Conseguem
dividir seu tempo, conseguem ir e vir entre as duas faces. Mas quando
esse hábito se torna uma compulsão, integra uma necessidade de
ostentação e de aprovação constante, é hora de questionar”, orienta
Fernanda. Conectar-se no virtual para fugir do real é o perigo, destaca a
terapeuta.
Nada de novo no front?
Há um
outro lado nessa história toda – o de quem curte. A exposição pode
criar, além de admiradores, uma rede de inveja. Existem aqueles perfis
de usuários de redes sociais que, apesar de não postarem nada de si
mesmos, acompanham a vida do outro. E pautam sua vida pela rotina alheia
– não por admiração.
A vontade de pertencer a um grupo é velha
conhecida dos seres humanos. O que mudou é a instantaneidade e os
critério de pertencimento. Se antes esperávamos dias pela revelação de
uma foto, hoje ela está no ar em segundos. “Posso mostrar o que eu
tenho, o que eu consumo. É isso que vai me tornar alguém diante dos
olhos de várias pessoas – o ter; e não o ser. A imagem que eu quero
passar está diretamente ligada ao consumo”, aponta Fernanda.
De
acordo com a psicóloga, a imagem construída na sociedade do consumo e da
performance contrasta com as queixas no consultório – solidão,
dificuldade para encontrar um companheiro (a), carência. “O selfie
traduz bem isso – eu gasto para me transformar em quem eu quiser e ficar
bonito de acordo com os critérios alheios. Segue-se a moda dos outros; e
não a própria moda”, pondera Fernanda.
Um dos maiores desafios do ser humanos é, segundo a especialista,
tolerar quem nós somos. “Não vejo problemas em uma intervenção
cirúrgica, desde que o significado seja realmente importante para aquele
indivíduo; e não por uma moda ou para ganhar exposição”, conclui.
Identidade
E
por que sempre os mais jovens são os mais afetados? Esses impactos são
mais fortes na turma com menos de 30 anos porque é justamente até essa
idade que a pessoa está construindo sua identidade.
Os mais
jovens têm ansiedade para experimentar, mas ainda não têm crivo para
avaliar plenamente. “Entre os 18 e 30 anos, é comum que a maioria das
pessoas faça o que todo mundo faz - tira a carteira, entra para a
faculdade. É a cultura do 'seu mestre mandou'”, esclarece Fernanda.
Por
volta dos 30 anos é que os questionamentos verdadeiramente acontecem e a
pessoa passa a reavaliar o que traz significado para a vida. Mas nem
sempre – até isso está mudando “As crianças têm que ser miniadultas, usa
roupas de adulto, crescer rápido. Depois entram na juventude e não
conseguem sair dela. Têm vida sexual ativa, emprego, renda, mas não
querem sair da casa dos pais, não querem assumir responsabilidades”,
aponta a psicóloga.
Fernanda avalia que os adultos de hoje são
'adulterados', pessoas que têm idade para serem adultos, mas não
entendem o que é responsabilidade ou consequência. Não sabem como lidar
com a tristeza, porque não há lugar para isso no mundo em que viveram. A
tristeza afasta as pessoas no mundo virtual, faz perder 'amigos'.
O resultado é o excesso de remédios para afogar os sentimentos, é o foco
no mundo virtual, no poder, na beleza. É a não-aceitação do
envelhecimento ou os efeitos da gravidez no corpo. “Quando a amiga vai
visitar a outra que teve bebê, a primeira reação é – olha, como você
está magra, ótima. E depois é que vem o bebê. Ficamos distantes de nós
mesmos, sem saber quem somos. Não aceitamos que o tempo traz coisas
boas”, define a especialista.
Inversão de valores
A
questão do aumento das cirurgias plásticas entre os adolescentes
esbarra também na inversão de valores – pais inseguros resolvem assumir a
posição de 'amigos' dos filhos, e jamais dizem ‘não’. O ‘não’ vai gerar
um trauma; e o trauma é ruim. “Os pais geram um ciclo muito negativo
para o ser em formação. Eles pensam - se eu repreender meu filho, ele
vai se tornar rebelde, vai usar drogas. E a criança fica sem limites e
sem referência”, exemplifica a profissional. Fernanda Seabra provoca: o
jovem que só ouve ‘sim’ dos pais, aceitará um não da namorada?
No
caso da filha que pede uma lipoaspiração ‘de presente’, é comum que a
mãe também esteja na mesma onda. “Se eu quero ver a minha filha feliz,
ela tem que fazer isso”, é a frase que vem à cabeça. “Muitos pais não
entendem a alternativa do diálogo franco - explicar que neste momento
ainda é cedo para uma intervenção desse porte. A vontade no futuro pode
ser outra, pode ser até oposta”, pondera.
A psicóloga completa
esse raciocínio com a questão das pequenas misses, submetidas a
tratamento de beleza quando ainda têm 3, 4 anos. “Não é uma realização
da criança, é da mãe”, alerta.
Fernanda considera que as consequências de 'pular etapas' refletem-se de
forma drástica na vida desses adolescentes, e não só na estética. “Se
há falta de limites e permissividade total, a vida sexual também se
inicia mais cedo. Quando ela começa antes que o corpo esteja pronto,
corremos o risco de ter uma geração de meninos e meninas que
simplesmente não têm prazer. Eles transam mesmo assim, porque 'todo
mundo transa'”, alerta a especialista.
Mundo interior desconectado
Todas
essas questões, que parecem mais externas – o cabelo liso, o corpo
escultural, o peito grande – estão vinculadas, na verdade, a uma
dificuldade de construir o mundo interior. Fernanda aponta que, para
haver conexão verdadeira consigo mesmo, é necessário perguntar-se: do
que eu gosto? O que me satisfaz? O que me deixa feliz? Do que eu não
gosto em mim? Como lido com essas coisas que eu não gosto? “Se a
resposta a essas perguntas for relacionada apenas às aparências e a
objetos de consumo, é tempo de parar e pensar”, diz Fernanda.
Quando
não há pausa para pensar, só teremos tempo para o mundo das imagens,
para as dietas malucas e os transtornos alimentares. “É por isso que o
nariz imperfeito torna-se fonte de sofrimento. É por isso que não
toleramos as outras pessoas, é por isso que nós nos desumanizamos.
Muitas vezes, só na dor e na perda é que conseguimos fazer essa conexão
interior. Temos que ensinar nossos filhos a questionar”, reforça. “E
isso vale para a obsessão pela beleza, para a dependência química (hoje,
meninos de 12 anos já são internados para tratar a dependência do
álcool), para as crises naturais da adolescência. Você deve mostrar ao
seu filho ou filha que ele tem valor, mesmo que a vida traga alguma
frustração - e ele tenha que lidar com ela”, conclui a psicóloga.
Fernanda
Seabra lembra que o problema não está na ferramenta ou na rede social
em si. Ela oferece uma infinidade de aplicações positivas. A preocupação
está no preparo para avaliar as posturas virtuais e o uso que cada um
adota. Em todos os casos, a dica é: questionamento. Perguntar-se, de
tempos em tempos, sobre os efeitos do online na vida real é sempre uma
postura válida.
Sinais de alerta:
Caso você apresente algumas dessas características, está na hora de parar para pensar, segundo a psicóloga Fernanda Seabra:
- dificuldade para desconectar das ferramentas online, causando atrasos em compromissos reais, por exemplo; ou noites insones;
- sentir-se menos bonito ou interessante em comparação com os 'amigos' das redes sociais;
- o número de curtidas e comentários em 'selfies' no Instagram ou Facebook é motivo de preocupação e de verificação constante;
- você
tira mais fotos para mostrar que você está em determinado lugar do que
para celebrar o momento ou indicar o programa aos amigos;
- você não posta nada pessoal, mas acompanha a rotina dos 'amigos' e quer imitá-los;
- você se sente tentado a fazer intervenções estéticas em função de fotos que vê nas redes sociais.